Vivemos tempos de distorções emocionais e afetivas. Em meio a crises humanitárias, abandono de idosos, crianças em situação de vulnerabilidade e a desvalorização da empatia real, uma nova febre toma conta do Brasil e do mundo: o cuidado quase religioso com bonecas “reborn”, tratadas como bebês de verdade.
Sim, estamos falando de adultos – muitos em plena lucidez – dando mamadeira, comprando enxoval, empurrando carrinho de bebê com uma boneca de silicone dentro. É mais do que uma excentricidade. É um sintoma social. Um alerta.
Enquanto seres humanos reais clamam por atenção, carinho, cuidado e políticas públicas que os acolham, cresce um mercado que lucra com o afeto direcionado ao inanimado. Clínicas que oferecem “partos” de reborn. Shoppings com eventos de “adoção”. Redes sociais que romantizam o apego doentio a um objeto.
Não estamos falando de brinquedos educativos ou apoio a traumas específicos, mas de adultos plenamente funcionais fugindo da realidade. De um culto à fantasia que substitui a conexão humana verdadeira por uma idealização plástica, silenciosa, que não chora, não contesta, não adoece — e, por isso mesmo, parece mais fácil de amar.
É preciso dizer com todas as letras: há algo profundamente errado quando um país permite que bonecas tenham berço, mas crianças de verdade durmam no chão frio de abrigos. Quando há campanhas para cuidar de um “bebê reborn”, mas não há mobilização para salvar um recém-nascido abandonado em uma maternidade pública.
É urgente repensar a direção afetiva da nossa sociedade. O que essa febre revela não é apenas solidão — mas uma perigosa fuga da realidade, um colapso emocional coletivo que transforma afeto em fetiche.
O afeto que falta no mundo real não pode ser compensado com silicone. E o silêncio de uma boneca não pode substituir o grito por dignidade que vem das ruas, dos lares e dos hospitais.